trilho do trem

Tiago Zarowny
3 min readApr 21, 2024

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Às vezes eu escrevo um monte de coisa que é só minha. Outras vezes escrevo sem escrever. Penso como se escrevesse e no fim desisto de escrever.

Escrevo nas paredes da mente essas coisas que são minhas, que às vezes nao são. Que muitas vezes permanecem assim assistindo tudo de longe, lá do horizonte onde me olham e acenam, mas que não chegam nunca aqui. Essas são as que habitam as escritas que não escrevo, e que acabam por serem exclusivamente só minhas.

E tenho tido muitas dessas. Tenho visto elas tão regularmente que não sei se ainda sei como faz pra escrever de fato. As escritas têm se tornado como personagens espectrais que habitam a narrativa e que agora sentam no banco de trás, mas quando eu olho no retrovisor, já não estão mais lá. E me acostumei a elas assim. Por isso não sei dizer, não parece caber aqui. Parece um desrespeito com esse ou esses fantasmas que me acompanham. E nao parece fazer sentido escolher um ou outro.

Apesar de tudo isso. Nos últimos tempos aprendi a me afeiçoar dos sonhos e isso não quero esquecer. E no meu sonho eu era assaltado, roubava a arma do assaltante e matava dois assaltantes e fugia fugia fugia fugia por ruas escuras e mal iluminadas com pessoas atrás de mim, pessoas me cercando, pessoas armando armadilhas pra me parar. E eu corria corria corria até encontrar o trilho do trem. E lá no trilho do trem tudo parava de me perseguir.

E eu tentando desvendar meu sonho acho claro que me sinto culpado por fazer o que em alguma medida é meu direito. Me sinto culpado por me defender. É o que meu sonho talvez me diga. E eu queria fugir desse lugar onde me defendo e preciso fugir e encontrar esse outro onde não há fuga.

E dessa vez desvendo meu sonho sozinho, como se eu tivesse esse poder que na verdade não sinto ter. E mais uma vez meu sonho se sonha pelas ruas. Correndo pelas ruas, fugindo pelas ruas, se escondendo pelas ruas, perseguindo ou explorando ruas, ficando perdido em ruas, tendo medo pelas ruas. São sempre as ruas.

E há pouco tempo descobri que há o orixá das ruas, das encruzilhadas, que habita as bordas, os entres. E achei fascinante. E tenho também isso no horizonte da minha mente como um escrito que não foi escrito. Há um mundo onde as ruas são tão importantes quanto nos sonhos. E quem sabe haja lá também um trilho do trem onde se habita sem precisar fugir.

Há lá também um outro que é todo calminho, e eu adoro ouvir falar desse, esse que quando nasce já vem defeituosinho, engual eu. Que vive a mais absoluta paz e que não foge. Não rouba arma, nao mata, não foge, não habita as ruas e não procura trilho de trem.

Eu adoro ouvir falar histórias e me lembro agora de uma sobre o trilho do trem. Me lembro de outra também. Me lembro também de ouvir muita história. Talvez lá dentro do meu sonho o trilho do trem tenha ficado cravado nas paredes da memória, junto com todo o resto, que me vem pelas ruas quando sonho, que me traz uma arma e me assalta quando sonho, que me persegue quando sonho.

Mas que quando acordo vira coisa escrita que não se escreve.

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