raio

Tiago Zarowny
3 min readJan 18, 2024

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Quem sabe um dia aconteça de eu morrer de raio. Que um raio um dia aconteça de cair em mim e eu aconteça de cair no chão e nunca mais levantar.

Muitas vezes acontece de eu ser distraído e me ver em situação de temporal. E em situações de temporal as realidades dos raios são aumentadas milhares de vezes mais do que em situações de não-temporal. E nessas situações de temporal, que eu tenho estado distraído, pode ser que qualquer hora eu venha a cair no chão, depois do raio cair em mim. E aí ganhar uma tatuagem em formato de raio. E quem sabe um lugar no cemitério, mas aí fica a critério do raio, imagino. Deve ser possível tomar um raio e permanecer vivo, com alguma ou muitas sequelas.

Morrer de raio seria honrado. Seria especial. Não é qualquer um que morre de raio. Somente seres muito privilegiados. Abençoados pela natureza. Ou amaldiçoados por ela, dependendo do seu ponto de vista. Não se escolhe morrer de raio, é preciso que haja uma reclamação sobre você lá no céu. Uma petição contra a sua existência. Uma raiva divina qualquer, um mandado de busca e apreensão contra o seu corpo, encabeçado por deus e executado por são pedro ou entidades análogas responsáveis pela chuva. Não se morre de raio sem que Deus tenha algo contra ti. Ou sem fazer o diabo feliz. De maneira geral, não se morre de raio. Passamos pelas chuvas, passamos pelos temporais e não tomamos o raio de canudinho. Mas isso não é porque somos abençoados por Deus, ou porque não merecemos o raio. É pura e exclusivamente porque não somos tão importantes assim.

Não morro de raio porque não importo. Porque Deus nem cogita me colocar numa página do diário geral da união decretando o meu aniquilamento. Eu nem existo no registro do IBGE celestial. Se botar meu cpf no computador da receita celestial, nem consta eu lá. E no entanto eu quando ando pelas chuvas que se tornam temporais, tenho medo dos raios. Talvez eu imagine que importe o suficiente pra um raio se gastar em mim. Que ele me acerte e me machuque com todo o seu poder. Mas ele é indiscutivelmente indiferente, avassaladoramente indiferente. Ele jamais me daria esse privilégio. Ele nem sabe que eu caminho aqui pela chuva, ali pela chuva. E que, aos olhos de um raio, sou a coisa mais especialmente apetitosa pra se acertar. Talvez eu não seja. Mas eu imagino. Eu imagino o sabor do raio passando em mim. Eu imagino uma dor de choque muito grande, misturada com uma dor de fogo, uma queimadura interna que me machuca por dentro. Eu imagino uma vontade exorbitante de continuar caminhando, mas ao mesmo tempo uma fraqueza absoluta de continuar. Eu imagino eu caindo ali mesmo, consciente do chão, mas incapaz de realizar qualquer movimento. Eu imagino eu sentindo os rios de água que o temporal traz e sinto a água bater em mim e fazer doer mais ainda a dor do raio. Eu sinto a chuva bater forte em mim e eu espero.

Eu escuto carros passarem na chuva mas eles são indiferentes também. Não parariam na chuva pra alguém caído na calçada. Provavelmente mais um bêbado. E eu caído de raio, escutaria os carros passando, a chuva batendo, o calor me queimando por dentro e a dor retumbando nas laterais de mim. Até que não sentiria mais nada.

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