Olhos

Hoje esse é o meu diário

Tiago Zarowny
3 min readNov 28, 2023

A verdade é que eu nao quero nada. Nem quero querer nada. Nem quero me meter em querencias. Nao quero viver dentro da cabeça de ninguém porque eu vivo aqui. No mundo aqui. Aqui. E também dentro da minha própria cabeça. E é aqui que eu quero querer. Não lá e nem em qualquer outro lugar.
Nao quero morar em nenhuma cabeça. Não quero ser nada além do que eu sou. Não quero ser uma imagem refletida no fundo da cabeça de ninguém. E no entanto alguma coisa falta tem faltado e vai continuar a faltar.
Alguma coisa falta mas eu nao quero nada. Não quero nada que ocupe esse buraco. Não quero nada que preencha esse vazio não quero que essa falta se desfaça. Não quero morar lá onde não conheço e nem quero habitar onde eu não sou. Não quero viver onde eu não vivo.
Não quero magoar ninguém e nem alimentar desejos, ser um ator de uma peça que acontece no fundo da cabeça de alguém. Cumprir um papel numa história onde eu não sou eu. Porque na verdade eu nem queria, e eu continuo não querendo. Não quero nada. Mas percebo que algo falta, que algo pressupõe essa busca e eu sinto esse cheiro e fico com vontade de sondar, de ir lá, de examinar o que é que é isso.
Sinto que algo falta, que algo pressupõe uma busca. Que tem uma necessidade a ser tapada. Mas eu não quero tapar. É como se eu quisesse sangrar e ver minha ferida aberta se refrescar no vento. Como se eu não quisesse tratar. E eu não quero. E eu escuto falar do remédio, da sutura, do curativo, mas não me convence. Eu entendo que é bom, mas não faz sentido. Há uma ferida e há remédios, há tratamento, mas eu não quero tratar. Eu escuto o médico falar e me dá tédio. Eu escuto o médico me dizendo pra ir comprar o remédio na farmácia e tenho preguiça. Ele me diz pra tomar de 6 em 6 horas e eu acho patético. Ele me diz pra trocar o curativo e eu quero rir da cara dele.
Eu não quero tomar remédio e nem colocar curativo. Quero ver minha ferida fazer zuuimmmm no vento. Refrescar no ar.
E fico sangrando.
Às vezes a ausência de alguma coisa não pressupõe uma falta. E aí é como se eu quisesse tampar o que nunca foi um buraco? Como se como esse lugar nunca foi uma questão, por erro eu acho que ele é e tento ocupar ele pq percebo ele lá, mas talvez ele não seja um problema, e nunca foi. E aí eu tento resolver algo que não é um problema. O que torna a própria resolução do suposto problema, um problema.
Porque eu não preciso morar na cabeça de ninguém. Nem ser um ator de uma peça na cabeça de ninguém. Mas a resolução do problema me faz ocupar esse lugar. E no fundo é um lugar que eu não quero ocupar. E ocupar sem querer ocupar me faz ser um babaca. Porque eu só deveria fazer o que quero fazer. E só aceitar fazer de fato se eu quiser mesmo fazer. Não é legal ser um ator numa peça de alguém se eu não quero ser ator.
E no entanto permanece isso que parece faltar. Esse espaço que devia ser ocupado por esse outro que percebe a gente e a gente percebe ele em contrapartida. Essa existência em conjunto. Que falta. Como se eu pudesse ser outro se eu me visse pelo olhar desse outro. Como se eu pudesse acessar esse eu que é no olhar do outro. E se eu me visse assim, talvez eu poderia ser completamente outro. E talvez esse outro fosse exatamente como eu sou.
Porque eu dentro da minha própria cabeça não tenho muitos meios de me ver com outros olhos. E me faltam olhos.

28/11

--

--