Olhinhos

Tiago Zarowny
2 min readSep 4, 2024

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Imaginar que eu não existo é uma das minhas brincadeiras preferidas, uma que acontece só entre eu e mim mesmo. E quando tudo fica em silêncio por mais de 1 minuto começa a rolar sem que eu perceba.
Não é uma inexistência como se eu tivesse morrido, que causaria algum efeito. É mais como "e só se eu não fosse ninguém?" Ou "e se eu não fosse nada?" E aí as coisas da vida entram em suspensão e no entanto tudo que vejo e sinto permanece. E eu não sou nada. Não morri. Só não sou ninguém.
Mas isso só acontece quando habito a posição de ninguém. Quando posso não ser nada livremente e brincar comigo mesmo sem ativamente fazer nada. Só experienciar o tempo e o fato de poder ver ouvir e sentir. E é aí que eu me alimento de algumas palavras que me formam às vezes. É quando não sou nada que tenho vontade de escrever. É quando não sou nada que tenho vontade de ser além de mim.
Queria ser dois olhinhos que flutuam e assistem o mundo como se fosse documentário. Queria poder ver o mundo como se fosse um filme experimental diferentoso com uma trilha sonora esquisita e a filmagem dos tiozinhos carregando carrinhos com coisas. Mães falando coisas pros filhos, sem ouvir o que é que se diz. Animais brincando uns com os outros sem ter ideia do que a brincadeira significa. Queria ver o mundo como um observador que só observa e não recebe nada em palavras. Só vê. E que vendo forma consigo mesmo os juízos sobre as coisas.
E às vezes eu sou esse. Não sou só dois olhinhos que flutuam, mas vejo o mundo de longe e imagino o filme que seria se dois olhinhos eu fosse. E aí eu imagino eu não sendo nada e imagino a tela onde o filme começa a passar e imagino tudo o que acontece por trás de tudo que aparece e no entanto continuo sem saber nada. Todo diálogo é imaginado tudo que é visto é só imagem, e aí todo o filme sobre a vida que se apresenta sou eu quem faz.

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