Encontro

Tiago Zarowny
2 min readMay 2, 2024

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Às vezes quando atravesso a rua eu não olho pra lado nenhum, eu finjo ter total controle sobre o espaço e pressuponho que tudo está seguro e atravesso sem olhar, como se meus ouvidos fossem olhos. Outras vezes eu olho pra todos os lados e a dúvida permanece, e mesmo com dúvida eu continuo em frente, talvez na esperança de estar errado. Eu me engano pensando que eu saberia caso houvesse algum perigo. E não. Eu não sei, e nem tenho ouvidos que funcionam como olhos.

O que há é uma espécie de esperança de me desencontrar, de me romper, que eu quebre as costelas uma perna bata a cabeça e perca a memória e aí eu não me encontre mais. Se um carro me acertar, ele teria acertado meu antigo eu. E é essa busca desse novo eu que me faz não olhar, é uma busca pelo desencontro, quando eu olharia pra mim e não mais me visse. E talvez haja algumas coisas com o poder de nos tornar outros e talvez eu faça muitas coisas tentando me tornar outro. E é estranho perceber.

Tem coisas que se faz regularmente esperando que um dia tudo seja diferente e nunca é. Eu estudo pra ser outro, trabalho pra ser outro, amo pra ser outro, aprendo pra ser outro, falo pra ser outro, escrevo pra ser outro e no entanto sou sempre o mesmo. Sou sempre o mesmo mas busco sempre esse outro que sou também eu. E eu também queria ser atropelado pelo biarticulado e ser outro de fato, num exercício invasivo quase como um serviço duplo de machucar o que sou e acolher o que não sou. Como se o que houvesse devesse ser destruído, pra abrir espaço pra esse outro que seria eu, se fosse. E que se fosse não seria como tomar um remédio controlado 2 por dia, não seria como passar um creme uma pomada qualquer. Seria como enfrentar um médico ortopedista com um serrote e uma esmerilhadeira e que ele de fato pudesse liberar esse outro que também sou eu.

Mas além do médico com o esmeril e o desejo velado de ser atropelado pelo biarticulado, também se faz o que tem que ser feito, na esperança de quem sabe um dia encontrar com esse outro que se anuncia mas que nunca é. Porque há também o aprender uma coisa cada dia. Também o machucar os músculos um pouco a cada dia. Também o conhecer gente um pouco a cada dia. E a cada coisa dessa ser um pouco mais esse outro que na verdade é um só e que não se rompe. A menos que se rompa pelo asfalto e pelo serrote do ortopedista.

E que lá no hospital eu me encontrasse comigo mesmo e tomasse o meu próprio lugar no controle de mim. E aí me desencontrasse de tudo.

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